POR MARI MONTEIRO
Sempre, durante as aulas de Literatura, um trecho de livro
ou características de determinados autores, permitem que eu faça algo que
adoro: a relação entre o que estamos aprendendo ( e que aconteceu há
séculos) com o que vivenciamos agora. Além de demonstrar a GENIALIDADE dos
autores da nossa Literatura clássica, fica claro para nós que as BOAS OBRAS são
atemporais.
Da última vez, agora antes do carnaval, conversávamos sobre “Memórias
Póstumas de Brás Cubas”, a mais famosa obra machadiana. Depois de lermos a
biografia do autor e a famosa dedicatória da obra, os alunos demonstraram
extremo interesse. Em seguida, lemos um fragmento da obra em que ele descreve seu
funeral, o qual contou com onze “amigos” (“ONZE!”), aliás, exclama ele neste
trecho.
Esta leitura, para minha alegria, desencadeou um produtivo debate
relacionando o porquê da dedicatória “AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES DO MEU CADÁVER...” e a ideia de que ele morrera insatisfeito com sua vida e certo de que possuía pouquíssimos
(se é que possuía) amigos VERDADEIROS.
Foi então que aproveitei para iniciar uma boa conversa em torno de um
recorte que lhes contei, a fim de que, à luz da OBRA MACHADIANA, eles pensassem
sobre o QUE VERDADEIRAMENTE TEMOS NESTA VIDA.
Diante disso, Lembrei-me de um fato ocorrido anos atrás, envolvendo alguns alunos. Estava eu colocando alguns números de páginas na lousa, quando ouvi:
Diante disso, Lembrei-me de um fato ocorrido anos atrás, envolvendo alguns alunos. Estava eu colocando alguns números de páginas na lousa, quando ouvi:
- Que isso “véi”? Este seu tênis ralé aí, que nem de marca
é? O meu é original. Não sou como você que compra roupa no camelô!
Ah!!! Logo eu fui ouvir uma coisa destas... Pra que? Deixei
tudo que havia planejado de lado. Esperei pacienciosamente o garoto sentar. Aproximei-me
dele devagar e esperei que ele me
dissesse algo. E ele disse:
- Que foi “SSÔRA”? (É assim mesmo que eu, como professora de
Língua Portuguesa “enxergo” a palavra dita rsrs).
A partir de então, segue um diálogo improvisado, claro, pois eu não
esperava isso... E, bocuda que sou, imagina se me calaria diante de tamanha
ARROGÂNCIA e CONSTRANGIMENTO de outros alunos. Era a Mari que estava ministrando
aquela aula e não um SER INANIMADO, sem
sangue nas veias. Não respondi e ele repetiu a pergunta. Queria me certificar
que todos já haviam se dado conta do iria acontecer...
- Estou olhando seu tênis. Bonito neh? O – RI – GI – NAL neh?
- É “ssôra”, só tenho roupa original.
- E a calça também é muito bonita. A camiseta também. E esse
boné? Da Oakley neh? Sabia que a Oakley é uma empresa norte-americana? E que os
norte - americanos nem sabem que você existe?
- E daí? Achei “da ora” e comprei. Mas não do camelô como
esse bando de Zé Mané aqui da sala compra.
- Bando de Zé Mané??? Então, querido, tenho uma SURPRESA pra você. Este tênis NÃO É SEU!
- Como não? Comprei p----!
- Mas não é seu! Esta calça não é sua! Esta camiseta que você nem sabe o que está escrito também não é sua. Esse boné não é seu!
- “Cê tá loca ssôra?”
- Quer ver como NADA DISSO É SEU? Digamos que você morresse amanhã... Sei lá de bala perdida, atropelamento... Estas fatalidades que sempre acontecem, na maioria das vezes com pobre, e a gente aqui é TUDO POBRE, e nunca sabemos quando vêm. Você não seria sepultado com estas roupas. Mas, suponhamos que fosse. AINDA ASSIM NADA SERIA SEU; pois apodreceria sob a terra. E, caso você fosse cremado, aí sim é que as roupas desapareceriam em segundos!
Durante algum tempo, ele ficou me olhando em silêncio. Nunca esquecerei o que me DISSE COM SEU OLHAR. Era um misto de raiva, de vergonha, de tristeza... Pediu licença. Saiu da sala por alguns minutos e, quando voltou, começou a acompanhar a aula que eu já havia iniciado.
ONDE ESTÁ A LITERATURA? Em tudo que ele disse e que eu disse, e no que ficou nas entrelinhas e nas pausas de nosso diálogo. Isso porque a Literatura é algo transformador, nada assim instantâneo ou miraculoso, mas que faz a diferença.
ONDE ESTÁ MACHADO DE ASSIS? Na ousadia de ser REALISTA; de
não calar pra uma sociedade hipócrita que impõe costumes e hábitos ao invés de
se preocupar com valores. Tal como Machado de Assis, que fez uma retrospectiva
e constatou com pessimismo o que havia vivenciado, eu também o fiz naquela
noite. Mas, com uma diferença, em tempo de o aluno repensar sua vida EM VIDA.
E, nesta aula sobre Machado de Assis e sobre as memória de Brás Cubas, percebi
que meus alunos do EM apreenderam a “mensagem” da obra e do autor, que representa um marco na Literatura
Brasileira.